É mais uma vitória, que a corrupta comunicação social portuguesa omite deliberadamente.
Esta decisão ocorre agora em fevereiro de 2022 e mais uma vez nada é destacado pela comunicação social portuguesa, quer seja jornais, rádio ou televisão.
Tribunal Lisboa reconhece apenas 152 óbitos por covid-19 e não os 17000
Desta vez, foi o Tribunal Constitucional português, a considerar que os “isolamentos profiláticos” decretados pelo governo português não têm fundamento legal.
Já antes o tribunal da Relação de Lisboa tinha declarado o mesmo que pode ler o acordão no seguinte link:
Tribunal de Lisboa arrasa eficácia dos testes PCR e quarentena forçada
Desta feita, tinha havido um “habeas corpus” para libertar as crianças do isolamento profilático e posteriormente o estado, através do ministério público recorreu, tendo agora o tribunal constitucional deliberado e decidido a favor da liberdade.
Tribunal de Lisboa considera ilegal medida de isolamento e quarentena
Deixamos na íntegra o acordão desta decisão e quem se sentir guiado que o partilhe, porque infelizmente a nossa corrupta comunicação social não o faz!
Recordamos ainda que ainda não há uma decisão da ação popular que entrou no supremo tribunal admnistrativo de Lisboa 4 de dezembro de 2020, contra as medidas da pandemia, sendo que há mais ações:
Ação Popular entra no Supremo Tribunal contra as medidas da Pandemia
adenda (11 de fevereiro): Este acórdão foi publicado nos jornais, mas sem qualquer destaque. Houve ainda também mais 2 acórdãos relacionados com o mesmo tema e como o mesmo desfecho: isolamentos ilegais.
Vamos ao acordão integral sem qualquer modificação. O acórdão é extenso e há aqui boa matéria para advogados e não só:
ACÓRDÃO Nº 88/2022
Processo n.º 504/2021
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
- Interpõe o presente recurso o Exmo Magistrado do Ministério Público (doravante, o recorrente), com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), confrontado que foi com a decisão de recusa de fls. 53/57, que adiante será transcrita no item 1.2.. São, pois, as incidências processuais conducentes a esse recurso que seguidamente relataremos.
1.1. A. e o seu filho B. receberam uma decisão administrativa do Delegado de Saúde da área da sua residência, com data de 13/05/2021 e com o seguinte teor:
“[…]
Ex.mos Srs. Encarregados de Educação (EE)
Após a comunicação de um caso de Covid-19 na Escola Secundária Seomara Costa Pinto e efetuada a subsequente investigação epidemiológica e avaliação das situações de exposição de alto risco, determina-se o Isolamento Profilático dos alunos da turma do 10º 4 e do 12.º 6 que frequentaram a escola nos dias 10 e 11 de maio de 2021.
Perante a atual situação epidemiológica de circulação de novas variantes do vírus responsável pela COVID19 e de surtos detetados em meio escolar, a Autoridade de Saúde, atenta ao princípio da precaução em Saúde Pública, determina também o Isolamento Profilático aos Coabitantes dos alunos. Este Isolamento significa que todo o agregado familiar deverá permanecer na residência habitual sem sair de casa e sem receber visitas.
O período de isolamento profilático terá a duração de 14 dias contados a partir da data da última exposição ao caso positivo. Nesta situação, o Isolamento Profilático corresponde ao período de 13/05/2021 a 25/05/2021 inclusive.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2. A. e B. requereram, então, junto do Juízo de Instrução Criminal de Sintra, a sua libertação imediata, mediante a providência de habeas corpus prevista no artigo 220.º do Código de Processo Penal (CPP). O processo correu os seus termos naquele juízo com o número 7232/21.6T8SNT e culminou na prolação de uma decisão cujo dispositivo é o seguinte:
“[…]
Pelo exposto:
- a) Declaro inconstitucional, material e organicamente, por violação dos artigos 112.º, 119.º, 161.º, 164.º, 166.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos da Constituição da República Portuguesa, norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, se interpretada no sentido de que permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial.
Em consequência:
- b) Declaro ilegal a ordem de privação de liberdade dos requerentes;
- c) Determino a imediata libertação dos requerentes, não podendo os mesmos ser compelidos a permanecer na habitação com fundamento na decisão da autoridade de saúde que vem junta a estes autos.
- d) Determino a imediata comunicação desta ordem à autoridade de saúde e órgãos de polícia criminal, ficando passíveis de responsabilidade criminal, aqueles que pretenderem compelir os requerentes a permanecer na habitação sem possibilidade de frequentar a via pública, com fundamento na ordem que agora se declara ilegal.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Assentou tal decisão nos fundamentos seguintes:
“[…]
Vista a matéria de facto acima elencada é forçoso concluir-se que os requerentes encontram-se privados da respetiva liberdade ambulatória, estando obrigados a permanecer no interior da residência por força de ordem administrativa da autoridade de saúde, consubstanciada no documento, junto aos autos, assinado por C., na qualidade de autoridade administrativa de saúde.
Conforme resulta do disposto no artigo 222.º a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade da privação de liberdade proveniente de ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial.
A providência interposta é, assim, adequada à apreciação da pretensão.
Importa aferir da legitimidade da ordem emitida.
Da ordem em causa não constam melhores indicações da previsão legal em que assenta a ordem de privação de liberdade, em clara violação do princípio da tipicidade em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias, o que implicaria, desde logo, a respetiva nulidade.
Questionada a este respeito o Senhora representante da autoridade de saúde invocou, para além de outras instruções administrativas, o estabelecido na Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, onde sublinha o disposto no artigo 3.º, quanto ao confinamento obrigatório.
Não se tratando embora de um instrumento normativo importará confrontá-lo com o estabelecido nas Leis hierarquicamente superiores com vista a aferir da legalidade de ordem no sentido aqui em apreciação, emitida por autoridade administrativa.
O direito à liberdade resulta expressamente do estabelecido no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa:
Artigo 27.º
(Direito à liberdade e à segurança)
- Todos têm direito à liberdade e à segurança.
- Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
- Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
- a) Detenção em flagrante delito;
- b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
- c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
- d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
- e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
- f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
- g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
- h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
- Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.
- A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.
A ordem de privação de liberdade emitida não se enquadra em nenhuma das enunciadas possíveis restrições.
A respeito da suspensão do exercício de direitos, entre os quais o de liberdade nas suas várias vertentes, nomeadamente ambulatória, estabelece o artigo 19.º da CRP:
Artigo 19.º
(Suspensão do exercício de direitos)
- Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição.
- O estado de sítio ou o estado de emergência só podem ser declarados, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública.
- O estado de emergência é declarado quando os pressupostos referidos no número anterior se revistam de menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem suspensos.
- A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.
- A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites.
- A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.
- A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares.
- A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.
No presente momento não vigora o estado de emergência pelo que não existe legislação excecional a ponderar.
Conforme resulta do artigo 18.º da CRP, os direitos liberdades e garantias estabelecidos na Lei Fundamental são diretamente aplicáveis e vinculam s entidades públicas e privadas, donde decorre que apenas poderiam ser suspensas por ato legislativo emanado pelo órgão constitucional com competência legislativa para tal.
Artigo 18.º
(Força jurídica)
- Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
- A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
- As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
(sublinhado do signatário)
São atos normativos, conforme artigo 112.º da CRP:
Artigo 112.º
(Atos normativos)
- São atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais.
- As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos.
- Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.
- Os decretos legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respetiva região autónoma que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º.
- Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
- Os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes.
- Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjetiva e objetiva para a sua emissão.
- A transposição de atos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto legislativo regional.
Uma vez que a autoridade de saúde invocou a resolução do Conselho de Ministros n.º 45C/2021, para fundamentar a sua decisão importa aferir se as disposições nela contidas têm a virtualidade de se sobrepor às normas constitucionais já citadas.
A resposta que se impõe é negativa uma vez que o estabelecido nessa resolução, produzida no âmbito da competência administrativa do Governo (artigo 199.º da CRP), não poderá produzir efeitos no sentido da criação de regimes excecionais que alterem o regime de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente fixado.
A interpretação apresentada pela autoridade de saúde no sentido de que o estabelecido no artigo 3.º da referida Resolução 45-C/2021 permitiria a imposição aos cidadãos de um regime excecional de privação da liberdade, note-se, dirigida massivamente contra um grupo indeterminado de pessoas, v.g., alunos do 10º4 e 12º6 que frequentaram a escola nos dias 10 e 11 de maio, respetivos coabitantes e agregado familiar, sem qualquer espécie de individualização, de modo abstrato, apresenta-se como material e organicamente inconstitucional.
Ao nosso sistema constitucional são estranhos institutos legais que permitam a privação de liberdade de cidadão, independentemente do motivo invocado:
- Por autoridade administrativa, sem controlo jurisdicional;
- Dirigido sem individualização a um grupo indeterminado de pessoas, e;
- Sem direito de audição prévia
Com efeito, como decorre dos preceitos acima citados, o nosso sistema constitucional não admite a privação da liberdade de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) por decisão administrativa e impõe mesmo a apresentação judicial de todos os cidadãos em situação de privação da liberdade, quer no âmbito do processo criminal como ainda no âmbito da saúde pública (como é o caso da Lei de Saúde Mental).
Impõe-se, assim a conclusão de que a decisão que impõe a privação da liberdade dos requerentes é ilegal, porque decretada por entidade incompetente e fundada em interpretação inconstitucional material e orgânica de normas de mera orientação administrativa e porque assente em interpretação segundo a qual poderá ser determinada privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2.1. Como antes referimos, desta decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo o recurso por objeto a “norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, quando interpretado no sentido de poder privar da liberdade um grupo indeterminado de pessoas, pelo período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial, com fundamento na sua inconstitucionalidade material e orgânica, por violação dos artigos 112.º, 119.º, 161.º, 164.º, 166.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos da Constituição da República Portuguesa”.
1.2.2. O recurso foi admitido no Juízo de Instrução Criminal de Sintra, com efeito devolutivo.
1.2.3. No Tribunal Constitucional, foi determinada a notificação das partes para alegarem. Só o Ministério Público apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões:
“[…]
- O Ministério Público interpôs, em data não posterior a 19 de maio de 2021, a fls. 64 e 65 dos autos supraepigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 53 a 58, proferida pelo Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Processo n.º 7232/21.6T8SNT, “(…) ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, al. a), da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º, n.º 1, al. a), estes da Lei n.º 28/82, de 15 novembro”.
- Este recurso tem como objeto a douta decisão que “(…) recusou a aplicação da norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30.04, quando interpretada no sentido de poder privar da liberdade um grupo indeterminado de pessoas, pelo período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial (…)”.
- Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes dos “(…) artigos 112.º, 119.º, 161.º, 164.º, 166.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos da Constituição da República Portuguesa”.
- Conforme resulta, inequivocamente, do teor da douta sentença recorrida, acabada, nas partes relevantes, de transcrever, decidiu o M.mo Juiz “a quo” – para além de estatuir a inconstitucionalidade da “norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, se interpretada no sentido de que permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial” – julgar “(…) que a decisão que impõe a privação da liberdade dos requerentes é ilegal, porque decretada por entidade incompetente”.
- Ou seja, se atentarmos na economia da decisão impugnada, podemos concluir que,independentemente do juízo formulável sobre a inconstitucionalidade material e orgânica da interpretação normativa desaplicada pelo Mm.º decisor “a quo” – a emergente do prescrito no artigo 3.º, n.º 1, do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril – o resultado processual final permaneceria inalterado, mantendo-se o veredicto no sentido da verificação da ilegalidade da detenção e a consequente determinação de restituição dos requerentes à liberdade.
- Consequentemente, verifica-se a ocorrência, na douta sentença recorrida, de uma fundamentação alternativa ao julgamento de inconstitucionalidade, suscetível de sustentar um resultado idêntico ao verificado, independentemente de qualquer juízo sobre a compatibilidade constitucional da norma efetivamente desaplicada.
- Por força do exposto, não poderemos deixar de concluir que, no caso vertente, não deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do presente recurso, uma vez que, verificando-se a ocorrência de uma fundamentação alternativa, a sua apreciação se revela inútil, na medida em que o resultado processual se manteria inalterado.
- Para a hipótese de assim não se entender, e sem prejuízo de tudo o que ficou exposto, passaremos a pronunciar-nos sobre a dimensão substantiva do objeto recursivo.
- A Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, de cujo regime anexo consta a norma encerrada na disposição sob escrutínio vigorou, por força do disposto nos seus números 1 e 16, entre as 0:00 horas do dia 1 de maio de 2021 e as 23:59 horas do dia 16 de maio de 2021 – tendo sucedido à Resolução do Conselho de Ministros n.º 6-A/2021, de 15 de abril, que regulamentou o Estado de Emergência declarado por meio do Decreto do Presidente da República n.ºs 41-A/2021, de 14 de abril.
- Tal resolução, que agora nos ocupa – a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, continente do regime anexo do qual consta a norma sob análise – instituiu uma situação de calamidade em todo o território nacional (pese embora o prescrito no artigo 2.º do regime anexo), ao abrigo do disposto, para além do mais, no “artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º e [n]o artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual”, ou seja, respetivamente, na Lei que institui o Sistema de Vigilância em Saúde Pública e na Lei de Bases da Proteção Civil.
- Com este respaldo, emitiu o Governo a norma ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Regime da situação de calamidade anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, a qual permite confinar obrigatória e coercivamente, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde, “os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa”, admitindo a restrição do direito à liberdade dos cidadãos que viessem a estar sujeitos à mencionada «vigilância ativa».
- O confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde constitui, sem dúvida, mais do que uma mera compressão, uma restrição à liberdade física, a liberdade de movimentos corpóreos ou, nas palavras de outros autores, à «liberdade de ir e vir».
- Assim, não poderemos deixar de concluir que a norma suspeita consagra uma privação da liberdade não excecionada pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, e que, por conseguinte, viola materialmente o direito à liberdade proclamado no n.º 1 deste mesmo artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa.
- Todavia, ainda que não adotemos este entendimento e aceitemos que o direito à liberdade pode ser, sem ofensa do Texto Fundamental, restringido, por lei, se colidente com outros direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos concretamente prevalecentes, em situações distintas das elencadas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, não poderemos deixar de considerar se tal compressão pode ser decidida pelo Governo (por meio de Resolução do Conselho de Ministros) sem autorização da Assembleia da República.
- De acordo com o prescrito no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre (…) [d]ireitos, liberdades e garantias”, não existindo qualquer dúvida, designadamente pela sua inserção sistemática, que o Governo, ao estipular sobre restrições ao direito à liberdade consagrado no artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa, legislou, sem, para tal, ter obtido autorização parlamentar, sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
- Na verdade, a Assembleia da República nunca autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o poder de confinamento de uma pessoa física ao espaço de um estabelecimento de saúde, do respetivo domicílio ou de qualquer outro local definido pelas autoridades de saúde.
- Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.
- Por isso, e mais uma vez, ao legislar, sem obtenção de autorização parlamentar, sobre o direito à liberdade, restringindo-o, o Governo invadiu a esfera da competência exclusiva da Assembleia da República e, por isso mesmo, feriu com a inconstitucionalidade orgânica a norma ínsita no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, constritora do confinamento obrigatório.
- Assim, atento o agora explanado, não pode o recorrente Ministério Público deixar de concluir que a norma contida no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, se revela, material e organicamente, violadora da Constituição da República Portuguesa, designada e respetivamente do princípio do direito à liberdade ínsito no artigo 27.º, n.º 1; e do prescrito na alínea b), do seu artigo 165.º.
- Por força do exposto, deverá o Tribunal Constitucional decidir não tomar conhecimento do objeto do presente recurso ou, caso assim não o venha a entender, tomar decisão no sentido de julgar orgânica e materialmente inconstitucional a norma ínsita no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, negando, assim, provimento ao presente recurso.
Nos termos do acabado de explanar, não conhecendo do objeto do presente recurso ou, decidindo conhecer, negando-lhe provimento, fará o Tribunal Constitucional a costumada justiça.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Cumpre apreciar e decidir o recurso.
II – Fundamentação
- O recorrente indicou como objeto do recurso – no requerimento de interposição do recurso – a “[…] norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril, quando interpretado no sentido de poder privar da liberdade um grupo indeterminado de pessoas, pelo período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial”. Já nas alegações, para além de ter suscitado a questão prévia do não conhecimento do objeto do recurso, concluiu pela inconstitucionalidade da norma contida no “artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril”.
Importa, pois, antes de mais, por um lado, precisar o objeto do recurso e, por outro, apreciar a referida questão prévia.
2.1. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, aprovada em reunião do Conselho de Ministros de 29/04/2021 e publicada no 1.º Suplemento do Diário da República, série I, n.º 84, de 30/04/2021, declarou a situação de calamidade em todo o território nacional continental, até às 23h59m do dia 16/05/2021, e aprovou, em anexo, o respetivo regime (observa-se que, no Diário da República, a referida resolução foi publicada como “Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021” e não como “Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, de 30 de abril”, não obstante o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, pelo que se usará, doravante, a designação tal como foi publicada).
O artigo 3.º do regime da situação de calamidade anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021 estabelece o seguinte:
Artigo 3.º
Confinamento obrigatório
1 – Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes:
- a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-CoV2;
- b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.
2 – As autoridades de saúde comunicam às forças e serviços de segurança do local de residência a aplicação das medidas de confinamento obrigatório.
3 – De acordo com a avaliação da situação epidemiológica e do risco concreto, da responsabilidade da administração regional de saúde e do departamento de saúde pública territorialmente competentes, os cidadãos sujeitos a confinamento obrigatório podem ser acompanhados para efeitos de provisão de necessidades sociais e de saúde, mediante visita conjunta da proteção civil municipal, dos serviços de ação social municipais, dos serviços de ação social do Instituto da Segurança Social, I. P., das autoridades de saúde pública, das unidades de cuidados e das forças de segurança bem como, mediante despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde e da área setorial respetiva, quaisquer outros serviços, organismos, entidades ou estruturas da administração direta ou indireta do Estado.
Perante os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, resulta evidente que os requerentes de habeas corpus se encontravam na situação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º (e não na situação prevista na alínea a) do mesmo número) e que não foram relevantes as disposições dos números 2 e 3 do referido artigo.
Assim, não obstante a recusa formal de aplicação de todo o artigo 3.º do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, a verdade é que, substancialmente, só foi recusada a norma contida na alínea b) do n.º 1 desse artigo, quando “[…] interpretada no sentido de que permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial” (enunciado do sentido interpretativo constante da decisão recorrida, que corresponde aos respetivos fundamentos).
Constitui, pois, objeto do recurso, rigorosamente, a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, na interpretação segundo a qual permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial.
2.2. Sustenta o Ministério Público que o Tribunal não deve tomar conhecimento do objeto do recurso, em síntese, porquanto a decisão recorrida, “[…] para além de estatuir a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 3.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, [entendeu que] a decisão que impõe a privação da liberdade dos requerentes é ilegal, porque decretada por entidade incompetente […]”, pelo que, ainda para o recorrente, “[…] independentemente do juízo formulável sobre a inconstitucionalidade material e orgânica da interpretação normativa desaplicada […] o resultado processual final permaneceria inalterado, mantendo-se o veredicto no sentido da verificação da ilegalidade da detenção e a consequente determinação de restituição dos requerentes à liberdade”, concluindo pela verificação de uma “[…] fundamentação alternativa ao julgamento de inconstitucionalidade, suscetível de sustentar um resultado idêntico ao verificado, independentemente de qualquer juízo sobre a compatibilidade constitucional da norma efetivamente desaplicada”.
Recorde-se o segmento da fundamentação da decisão recorrida que se debruça sobre a questão da incompetência:
“[…]
A interpretação apresentada pela autoridade de saúde no sentido de que o estabelecido no artigo 3.º da referida Resolução 45-C/2021 permitiria a imposição aos cidadãos de um regime excecional de privação da liberdade, note-se, dirigida massivamente contra um grupo indeterminado de pessoas, v.g., alunos do 10º4 e 12º6 que frequentaram a escola nos dias 10 e 11 de maio, respetivos coabitantes e agregado familiar, sem qualquer espécie de individualização, de modo abstrato, apresenta-se como material e organicamente inconstitucional.
Ao nosso sistema constitucional são estranhos institutos legais que permitam a privação de liberdade de cidadão, independentemente do motivo invocado:
- Por autoridade administrativa, sem controlo jurisdicional;
- Dirigido sem individualização a um grupo indeterminado de pessoas, e;
- Sem direito de audição prévia
Com efeito, como decorre dos preceitos acima citados, o nosso sistema constitucional não admite a privação da liberdade de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) por decisão administrativa e impõe mesmo a apresentação judicial de todos os cidadãos em situação de privação da liberdade, quer no âmbito do processo criminal como ainda no âmbito da saúde pública (como é o caso da Lei de Saúde Mental).
Impõe-se, assim a conclusão de que a decisão que impõe a privação da liberdade dos requerentes é ilegal, porque decretada por entidade incompetente e fundada em interpretação inconstitucional material e orgânica de normas de mera orientação administrativa e porque assente em interpretação segundo a qual poderá ser determinada privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Resulta do exposto que a referência à incompetência da entidade que decretou o confinamento se apresenta como uma mera consequência da inconstitucionalidade: a entidade é incompetente, para o tribunal recorrido, porque “[…] o nosso sistema constitucional não admite a privação da liberdade de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) por decisão administrativa”. Não se trata, pois, de um fundamento com autonomia substancial face à questão de inconstitucionalidade – a incompetência, no sentido usado na decisão recorrida, só subsiste se o juízo de inconstitucionalidade se mantiver também. Não se trata, pois, de um verdadeiro fundamento alternativo, uma vez que, na hipótese de procedência do recurso e reversão do juízo de inconstitucionalidade, deixaria de se afirmar.
A utilidade do recurso não resulta, pois, prejudicada pelo apontado fundamento, pelo que – à falta de outras questões prévias perspetiváveis – nada obsta ao conhecimento do respetivo objeto.
2.3. Importa contextualizar o diploma que contém a norma sub judice na sucessão de atos normativos relativos à pandemia da doença Covid-19.
Pelo Despacho n.º 2836-A/2020, de 2 de março, da Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Ministra da Saúde, foi determinado que os empregadores públicos elaborassem um plano de contingência alinhado com as orientações emanadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS), no âmbito da prevenção e controlo de infeção por SARS-CoV2. No Despacho n.º 2875-A/2020, de 3 de março, da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Ministra da Saúde, adotaram-se medidas para acautelar a proteção social dos beneficiários que se encontrassem impedidos, temporariamente, do exercício da sua atividade profissional por ordem da autoridade de saúde, devido a perigo de contágio.
Entretanto, foi determinada a suspensão de alguns voos provenientes de Itália (Despacho n.º 3186-C/2020 e Despacho n.º 3186-D/2020, publicados em 10 de março).
Pelo Despacho n.º 3298-B/2020, de 13 de março, do Ministro da Administração Interna e da Ministra da Saúde, foi declarada a situação de alerta em todo o território nacional até 9 de abril de 2020. Na mesma data, através do Despacho n.º 385/2020, da Secretária Regional da Saúde, foi declarada a situação de alerta em todo o território da Região Autónoma do Açores, até ao dia 31/03/2020, inclusive.
Ainda na mesma data, para além da ser determinada a interdição do desembarque e licenças para terra de passageiros e tripulações dos navios de cruzeiro nos portos nacionais (Despacho n.º 3298-C/2020), foi aprovado em Conselho de Ministros um conjunto de medidas relativas à situação epidemiológica (Resolução do Conselho de Ministros n.º 10-A/2020) e publicado o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus. Na sequência dos diplomas publicados em 13/03/2020, foram adotadas diversas medidas destinadas a conter a transmissão do vírus SARS-CoV2.
Em 18/03/2020, foi declarado o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública (Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de março, e Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março). A declaração do estado de emergência foi sendo sucessivamente renovada, vigorando até 02/05/2020.
O Governo declarou, então, a situação de calamidade, que vigorou em todo o território continental até 26/06/2020 (Resoluções do Conselho de Ministros n.os 33-A/2020, 38/2020, 40-A/2020 e 43-B/2020). Entre 27/06/2020 e 31/07/2020, coexistiram, em Portugal continental, em diferentes regiões, a situação de calamidade, a situação de contingência e a situação de alerta (Resoluções do Conselho de Ministros n.os 51-A/2020 e 53-A/2020). Entre 01/08/2020 e 11/09/2020, coexistiram, no mesmo território, em diferentes regiões, a situação de contingência e a situação de alerta (Resoluções do Conselho de Ministros n.os 55-A/2020, 63-A/2020 e 68-A/2020). Entre 12/09/2020 e 08/11/2020, vigorou em todo o território nacional continental a situação de contingência (Resoluções do Conselho de Ministros n.os 70-A/2020, 81/2020, 88-A/2020 e 92-A/2020).
Foi novamente declarado o estado de emergência, desde 09/11/2020 (Resolução da Assembleia da República n.º 83-A/2020, de 6 de novembro, e Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro), coexistindo com a situação de calamidade até 23/11/2020 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 96-B/2020). A declaração do estado de emergência foi sendo sucessivamente renovada, vigorando até 30/04/2021.
Foi novamente declarada a situação de calamidade, com efeitos a partir de 01/05/2021, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, que contém a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida.
2.4. Na decisão recorrida, considerou-se que a norma objeto do recurso viola o disposto nos “[…] artigos 112.º, 119.º, 161.º, 164.º, 166.º, 198.º, 199.º e 200.º, todos da Constituição da República Portuguesa”, porquanto “o nosso sistema constitucional não admite a privação da liberdade de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) por decisão administrativa e impõe mesmo a apresentação judicial de todos os cidadãos em situação de privação da liberdade, quer no âmbito do processo criminal como ainda no âmbito da saúde pública (como é o caso da Lei de Saúde Mental)”.
Os requerentes da providência de habeas corpus foram sujeitos a confinamento obrigatório por decisão de 13/05/2021, altura em que já não vigorava a declaração do estado de emergência (declarado inicialmente pelo Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro, e renovada, pela última vez, pelo Decreto do Presidente da República n.º 41-A/2021, de 14 de abril, até 30/04/2021, após o que vigorou a situação de calamidade declarada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021).
Assim, não concorrem para o enquadramento jurídico-constitucional do caso que ora se aprecia as normas relativas ao estado de emergência. Por outro lado, a “situação de calamidade” não tem relevância constitucional para efeitos de suspensão de direitos, liberdades e garantias, relevando para esse efeito apenas a “calamidade” que funda a declaração do estado de emergência (artigo 19.º, n.º 2, da Constituição) – “[o] estado de emergência constitucional é declarado com o objetivo de promover o regresso à normalidade. A situação de calamidade administrativa visa o mesmo objetivo, mas, em vez de atuar por via da suspensão dos direitos fundamentais, persegue-o no âmbito de um quadro legislativo que envolve restrições específicas e predefinidas desses mesmos direitos” (Miguel Nogueira de Brito, Modelos de emergência no direito constitucional, revista e-Pública, vol. 7, n.º 1, abril de 2020, disponível em www.e-publica.pt, p. 8; sobre alguns problemas normativos em estado de emergência, v., ainda, Pedro Lomba, Constituição, estado de emergência e administração sanitária: alguns problemas, revista e-Pública, cit., pp. 28/43, e Catarina Santos Botelho, “Estados de exceção constitucional: estado de sítio e estado de emergência”, in Carla Amado Gomes e Ricardo Pedro (eds.), Direito Administrativo de Necessidade e de Exceção, Lisboa, 2020, pp. 9/57, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3619217; v., ainda, o Acórdão n.º 424/2020, ponto 2.2.).
Perante este quadro, vejamos se a inconstitucionalidade afirmada na decisão recorrida deve ter-se por verificada, considerando que, atentos os fundamentos dessa decisão, se trata, a título principal, de uma inconstitucionalidade orgânica.
2.5. No Acórdão n.º 424/2020 – numa hipótese que apresenta diversos pontos de contacto com a dos presentes autos – o Tribunal decidiu “[j]ulgar inconstitucionais as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do Governo n.º 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, por referência ao artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa”. Esta decisão assentou nos fundamentos seguintes:
“[…]
2.2.1. A alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição prevê o seguinte:
Artigo 165.º
(Reserva relativa de competência legislativa)
- É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
———————————————————————————————————————
- b) Direitos, liberdades e garantias;
———————————————————————————————————————-
Esta previsão “[…] inclui seguramente a regulamentação de todos os direitos enunciados no Título II da Parte I da Constituição [contêm-se neste título os artigos 24.º a 57.º] […]. A reserva de competência legislativa da AR nesta matéria vale não apenas para as restrições (art. 18.º), mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 327; no mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2018, p. 544).
Trata-se de um entendimento pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional, entendendo-se que (tomando de empréstimo as palavras do Acórdão n.º 362/2011):
“[…]
[T]odo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito.
[…]”.
Impõe-se, pois, verificar se as normas que estão em causa nos presentes autos disciplinam um dos “direitos, liberdades e garantias” previstos na Constituição.
2.2.2. Estabelece o artigo 27.º da Constituição:
Artigo 27.º
Direito à liberdade e à segurança
1 – Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2 – Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3 – Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
- a) Detenção em flagrante delito;
- b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
- c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
- d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
- e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
- f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
- g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
- h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
————————————————————————————————————
No Acórdão n.º 479/94, o Tribunal pronunciou-se sobre o sentido da norma do artigo 27.º da Constituição nos termos seguintes:
“[…]
A norma do artigo 27.º da Constituição é particularmente exigente em relação às restrições que consente ao direito fundamental nela consagrado, impondo ao legislador um grau de vinculação muito intenso.
Antes ainda da revisão constitucional de 1982, Figueiredo Dias considerava que “nenhuma ordem jurídica pode viver e manter-se sem a utilização de certas medidas que obriguem fisicamente as pessoas a apresentarem-se a certos atos ou a submeterem-se a certas formalidades”, sustentando não encontrar qualquer óbice a que, “para além da prisão preventiva, seja constitucionalmente admissível a detenção, a custódia, a guarda à vista ou a vinculação de presença. Ponto é que, naturalmente, a aplicação de tais medidas seja contida dentro de um estrito princípio de necessidade e de proporcionalidade e seja revestido de efetivas garantias, nomeadamente quanto à sua judicialidade tendencialmente imediata nos casos em que a situação de restrição ou privação da liberdade deva manter-se” (cfr. “A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais”, Livros Horizonte, 1981, pp. 86 e 87).
Mas, como já se observou, as revisões constitucionais não alargaram significativamente o quadro das exceções ao princípio do direito à liberdade, havendo até, a revisão de 1982, introduzindo uma alteração na regra do n.º 2 em termos de lhe emprestar, se não um acréscimo, ao menos uma acrescida precisão na garantia ali consagrada.
Neste contexto jurídico-constitucional tem sido reconhecido pela doutrina como de “duvidosa constitucionalidade” a consagração legal de uma medida de detenção para fins exclusivos de identificação, quando a identificação não puder ser de imediato provada (cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., pp. 319 e 324 e João Castro e Sousa, Os meios de coação no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal – O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pp. 160 e 161).
Com efeito, o procedimento de identificação a que se reporta o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto sob exame, ao permitir que se imponha aos identificandos, com base em exclusivas razões de segurança interna, uma permanência num posto policial que pode prolongar-se até seis horas, há de considerar-se como uma privação total da liberdade não cabível no quadro das exceções que taxativa e tarifadamente a Constituição prevê.
Tem-se por inaceitável o entendimento de que a privação da liberdade assim verificada possa ser entendida como mera restrição da liberdade, implicando tão só um condicionamento da liberdade ambulatória dos identificandos autorizado no quadro das restrições consentidas pela Constituição em sede de direitos, liberdades e garantias.
E tem-se por inaceitável, porque a norma sob sindicância na sua “máxima dimensão abstrata” – permanência coativa até seis horas em posto policial para efeito de identificação por razões de segurança interna – (e só esta aqui importa considerar, sendo de todo irrelevante, dentro da delimitação do objeto do pedido, a consideração de outras hipotéticas dimensões), se traduz manifestamente numa privação da liberdade, numa privação total da liberdade, já que o identificando durante este lapso temporal fica circunscrito ao espaço confinado das instalações de um posto policial, de todo impedido de circular e de livremente se movimentar.
Independentemente da questão de se averiguar, com inteiro rigor dogmático, qual a diferença de natureza ou de grau e de intensidade entre a “privação total ou parcial da liberdade” e “as restrições à liberdade que não se traduzem na sua privação total ou parcial” [cfr. a decisão de 6 de novembro de 1980 (Caso Guzzardi contra a Itália) do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Publications de la Cour Européenne des Droits de l’Homme, Série A – Arrêts et decisions, vol. 39, Affaire Guzzardi, Conseil de L’Europe, Strasbourg, 1981, pp. 32 e 33, na qual se considera a situação da “privação da liberdade” (artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e a restrição à liberdade de circulação (artigo 2.º do Protocolo Adicional n.º 4)] poder-se-á dizer que a distinção se suporta num critério qualitativo e não quantitativo, isto é, a privação da liberdade atinge diretamente uma dimensão da dignidade da pessoa humana, enquanto a mera restrição ou limitação da liberdade apenas condiciona o pleno desenvolvimento dessa dimensão.
Segundo Maunz-Dürig, a privação da liberdade (Freiheitsentziehung) existe quando alguém contra a sua vontade é confinado, coativamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída. Local delimitado (eng umgrenzter Ort) pode ser o espaço de um edifício ou um acampamento. Haverá ainda privação da liberdade quando a pessoa detida puder deixar o estabelecimento prisional para trabalhar sob vigilância das autoridades prisionais.
A mera limitação de liberdade (Freiheits-beschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12).
A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida).
A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.
[…]” (sublinhados acrescentados).
Se é certo que os âmbitos dogmáticos de privação e de restrição e, acima de tudo, a delimitação da sua fronteira in concreto não são unívocos (cfr., designadamente, as declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 479/94), o certo é que o Tribunal tem regressado a esta jurisprudência (cfr., designadamente, os Acórdãos n.os 185/96, 83/2001, 471/2001, 204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016) e o Tribunal Constitucional Federal Alemão também não abandonou, no essencial, os traços gerais da apontada distinção [cfr., recentemente, o acórdão de 24/07/2018 (2 BvR 309/15 e 2 BvR 502/16), §67, bem como as citações ali indicadas: “2. a) O âmbito de proteção do artigo 2.º, n.º 2-2, da Lei Fundamental abrange tanto as medidas restritivas da liberdade (freiheitsbeschränkende Maßnahme) como as medidas privativas da liberdade (freiheitsentziehende Maßnahme); o Tribunal Constitucional distingue estas categorias de medidas com base na intensidade da interferência [na liberdade]. Um ato constituirá uma restrição da liberdade se alguém for impedido por autoridade pública, contra a sua vontade, de se deslocar para um lugar ou de permanecer num lugar que, de outro modo seria – no plano de facto e no plano jurídico – de acesso livre para si. Um ato constituirá uma privação da liberdade, o modo mais severo de restrição da liberdade, se suprimir a liberdade de movimento – que exista, em termos gerais, nas concretas circunstâncias de facto e de direito – nas suas diversas vertentes. A privação da liberdade caracteriza-se pela particular intensidade da interferência, e ainda pela sua duração, que não deve ser meramente de curto prazo” – v., ainda, o acórdão de 15/05/2002 (2 BvR 2292/00), §§ 24 e 25, ambos disponíveis em www.bundesverfassungsgericht.de/].
Está em causa, em suma, no artigo 27.º da Constituição, “[…] o direito à liberdade física, à possibilidade de movimentação sem constrangimentos. Tutela-se aqui, conforme tem sido consensualmente reconhecido, um aspeto parcelar e específico das diversas dimensões em que se manifesta a liberdade humana, o direito à liberdade física, entendida «como liberdade de movimentos corpóreos, de ‘ir e vir’, a liberdade ambulatória ou de locomoção» (cfr. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p. 638) ou como «direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar» (cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 478). É este também o entendimento que, de forma reiterada, tem sido sustentado pelo Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos n.os 479/94, 663/98, 471/2001, 71/2010, 181/2010 e 54/2012)” (Acórdão n.º 204/2015), incluindo “o direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 479).
Como explica José Lobo Moutinho, “[o] facto de a Constituição, e também a doutrina e a jurisprudência, falarem a propósito da liberdade física assim entendida, de liberdade tout court (ou, como faz a Constituição italiana, de liberdade pessoal), sem outra adjetivação, é uma mera figura de estilo, explicável pelo facto de a liberdade física, como as suas restrições, enquanto justamente físicas, se mostrarem mais claramente apreensíveis e aparecerem como a forma mais direta de compressão da liberdade humana, pelo facto de, por elas, se limitarem indiretamente muitas outras expressões da liberdade – pelo que pode dizer que a liberdade física as precede e condiciona (Vezio Crisafulli/Livio Paladin, Commentario breve alla Constituzione, Padova, 1990, pág. 79) – e pela gravidade que daí lhes advém (bem expressa no facto de, entre nós, a sua privação estar incluída no conteúdo das mais graves de entre as penas: as de prisão” (anotação ao artigo 27.º, Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2018, p. 544). Este entendimento da “liberdade” prevista no artigo 27.º da Constituição enquanto (também e principalmente) “liberdade física”, que as exceções do n.º 3 confirmam em polo negativo, corresponde ao sentido interpretativo que tem sido adotado na jurisprudência constitucional – v., designadamente, os Acórdãos n.os 479/94, 185/96, 83/2001, 471/2001, 204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016.
2.2.3. O Tribunal, para aferir de uma eventual privação ou restrição, deve atentar, particularmente, na intensidade da afetação da liberdade resultante da aplicação das normas cuja aplicação foi recusada.
Importa, para o efeito, recordar o contexto factual fixado na decisão recorrida – não na medida em que o recurso tenha por objeto os factos (trata-se, como é sabido, de um recurso normativo), mas na medida em que estes revelam a potencialidade abstrata de restrição resultante da execução das normas aplicadas. Na verdade, tendo as normas sido executadas – sem desvio aparente face à respetiva estatuição – nos termos descritos na decisão recorrida, os correspondentes factos constituem um exemplo concreto do seu alcance abstrato. Podem, pois, e devem, neste preciso sentido e contexto, ser olhados tais factos enquanto acontecimentos reveladores da intensidade da afetação visada ou consentida pelas normas. Tais factos podem alinhar-se do modo que se passa a descrever.
1 – A pessoa visada pela norma foi encaminhada para uma certa zona do aeroporto, onde permaneceu conjuntamente com os demais passageiros e respetivas bagagens, até ser transportada num autocarro, escoltado por um carro policial com os rotativos ligados, para o Hotel …., sito à Avenida …, em Ponta Delgada.
2 – Uma vez ali chegada, foi encaminhada para a zona do check-in, tendo-lhe sido atribuído um quarto de hotel específico, altura em que foi informada de que não podia sair do quarto, onde teria de permanecer durante os próximos 14 dias.
3 – Mais foi informada de que as refeições seriam fornecidas pelo hotel em três momentos definidos do dia, havendo duas alturas em que podia solicitar refeições/snacks adicionais.
4 – Foi destacado um agente da PSP para a porta de entrada do hotel.
5 – Feito o check-in, a pessoa visada pela norma foi para o seu quarto, onde permaneceu ininterruptamente, o que corresponde às indicações que recebeu.
5 – A limpeza e manutenção do quarto foi feita pela pessoa visada pela norma, fornecendo o hotel toalhas e lençóis para mudar a cama, se solicitados.
6 – A lavagem e tratamento da roupa pessoal teve de ser efetuada pela pessoa visada pela norma, que foi informada de que não havia serviço de lavandaria, sendo fornecido detergente, se solicitado.
7 – A pessoa visada pela norma foi informada de que apenas seria possível aos familiares e amigos deixarem bens de 1.ª necessidade na receção para lhe serem entregues, como produtos de higiene, não tendo sido permitido que o cônjuge lhe trouxesse roupa para seu uso pessoal.
8 – Desde o dia em que aterrou nos Açores, a pessoa visada pela norma, apesar de falar telefonicamente com o cônjuge, não pôde ter contacto presencial com este, nem com qualquer outra pessoa.
9 – Apenas viu o cônjuge uma vez, estando este na via pública e a pessoa visada pela norma na varanda do quarto.
10 – Não lhe é permitido circular nos corredores do hotel nem em qualquer outra zona do mesmo, para além do seu quarto, havendo indicação de ronda por parte de agente da PSP de modo aleatório.
11 – Todos os passageiros que não apresentavam qualquer sintoma e cuja temperatura corporal era considerada normal eram encaminhados de autocarro para unidade hoteleira previamente determinada – Hotel … ou Hotel …– sendo informados de que tinham de permanecer confinados ao quarto que lhes era atribuído durante o período de 14 dias e de que eram vigiados diariamente, por contacto telefónico.
12 – Não lhe foi permitida a saída do quarto, nem o contacto com outras pessoas, designadamente familiares, amigos ou demais hóspedes.
13 – As refeições eram transportadas num carrinho por um empregado do hotel, que batia à porta, após o que se afastava, permitindo ao hóspede recolher a refeição, recolhendo em seguida o carrinho.
14 – Qualquer exercício físico teve de ser efetuado no quarto, não sendo permitido o acesso ao exterior do hotel nem aos demais espaços desse mesmo hotel, aqui se incluindo os corredores.
Medidas como as que se acabam de traçar – elencadas no contexto já referido no começo deste item – têm, evidentemente, um impacto significativo (o que quase corresponde a um eufemismo) na liberdade dos cidadãos [“[o] gozo do direito à liberdade pessoal é afetado pela imposição de quarentena obrigatória aos passageiros provenientes do estrangeiro e pela imposição de isolamento a pessoas suspeitas ou confirmadas com teste positivo de infeção pelo novo coronavírus” – Alessandra Spadaro, COVID-19: Testing the Limits of Human Rights, European Journal of Risk Regulation, European Journal of Risk Regulation, 11(2), 317-325. doi:10.1017/err.2020.27].
Em coerência com a jurisprudência constitucional anterior, impõe-se concluir que a maior parte das restrições descritas – mas, acima de tudo, o seu conjunto – corresponde, inequivocamente (e recuperando a classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima dimensão abstrata”, implica que o visado “fica circunscrito [a um] espaço confinado […], de todo impedido de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão), seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito pouco [e, descontada a envolvência (um quarto de hotel) porventura mais “amigável”, em nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspetos mais gravosos (por exemplo, a falta de acesso a um espaço comum para exercício físico), seja até, por maioria de razão, face ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas (quando no caso dos autos está em causa um período até 56 vezes superior a esse).
Em suma, as normas sub judice preveem medidas de privação da liberdade, de sinal contrário à previsão do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição e ao direito à liberdade consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, na sua vertente de liberdade pessoal.
2.2.4. Como vimos (supra, 2.2.1.), todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que “[…] ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito” (Acórdão n.º 362/2011). Assim, verificando-se que as normas sub judice estabelecem medidas que privam da liberdade as pessoas por ela visadas, contra o previsto no artigo 27.º da Constituição (supra, 2.2.3.), é evidente que a respetiva matéria se encontra abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – competência que não foi concretamente delegada e só o poderia ser no Governo (e não no Governo Regional – cfr. artigos 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º, n.º 1, da Constituição).
De todo o modo, “[…] a distinção entre privação total da liberdade (nomeadamente a prisão, que aliás pode revestir diversos graus de intensidade de confinamento) e a privação parcial (por exemplo, a proibição de entrada em determinados locais, proibição de residência em determinada localidade ou região) só tem relevo constitucional na medida em que a diferente gravidade de uma e outra deve ser tomada em conta na sua justificação sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, cit., p. 479)
Esta conclusão no sentido da verificação de inconstitucionalidade orgânica (nela comungando, Tiago Fidalgo de Freitas, A execução do estado de emergência e da situação de calamidade nas regiões autónomas – o caso da pandemia COVID-19, revista e-Pública, cit., pp. 74/75) não seria – e não é – abalada pelo sentido adotado em outras discussões periféricas e a jusante.
Assim, quem entender que, com a imposição de quarentena, designadamente através de confinamento, não está em causa o direito à liberdade, previsto no artigo 27.º da Constituição, mas sim o direito à deslocação, previsto no artigo 44.º da Constituição (sobre esta discussão, ver Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais e inconstitucionalidade em situação de crise – a propósito da epidemia COVID-19, revista e-Pública, cit., pp. 79-117, especialmente pp. 95 e ss. e p. 99, e Estado de Emergência – Quatro notas jurídico-constitucionais sobre o Decreto Presidencial, disponível em https://observatorio.almedina.net/; José de Melo Alexandrino, Devia o direito à liberdade ser suspenso? – Resposta a Jorge Reis Novais, disponível em https://observatorio.almedina.net/; Miguel Nogueira de Brito, Pensar no estado da exceção na sua exigência, disponível em https://observatorio.almedina.net/; e Rúben Ramião, O Direito à Liberdade e o Estado de Emergência numa Releitura de Alf Ross (2.ª Resposta a Jorge Reis Novais) e Lendo a Constituição em Estado de Emergência (3.ª Resposta a Jorge Reis Novais), disponíveis em http://www.icjp.pt/publicacoes/papers/4), concluirá de igual modo estar em causa um direito referido na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP.
Também não interfere com a conclusão ora alcançada a discussão sobre a viabilidade constitucional das medidas de internamento em unidade de saúde, face ao disposto no artigo 27.º da Constituição [cfr., sobre esta discussão, cfr. André Dias Pereira, Sobre o internamento compulsivo de portadores de tuberculose – anotação ao acórdão da Relação do Porto de 6 de fevereiro de 2002, Lex Medicinae, n.º 1, janeiro-junho de 2004, pp. 135/142; A., Internamento compulsivo de doentes com tuberculose, Lex Medicinae, n.º 2, julho-dezembro de 2004, pp. 87/124; Ana Paula Guimarães e Fernanda Rebelo, Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e dos Protocolos Adicionais, vol. I, org. por Paulo Pinto de Albuquerque, Lisboa, 2019, pp. 826/831; e Vasco Ricoca Peixoto, Ricardo Mexia, Nina de Sousa Santos, Carlos Carvalho e Alexandre Abrantes, Da tuberculose ao COVID-19: legitimidade jurídico-constitucional do isolamento/tratamento compulsivo por doenças contagiosas em Portugal, na Ata Médica Portuguesa, vol. 33, n.º 4 (2020), p. 225; Catarina Santos Botelho, “Estados de exceção constitucional: estado de sítio e estado de emergência”, cit., especialmente as considerações tecidas no respetivo ponto 3.3.-b)], seja porque não se trata, in casu, de internar cidadãos em unidade de saúde, seja porque o entendimento no sentido da viabilidade de tais medidas não deixaria de remeter para a sua adoção por lei parlamentar ou diploma do Governo autorizado pela Assembleia da República.
Mostra-se, pois, bem fundado o juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida, no que respeita à inconstitucionalidade orgânica das normas cuja aplicação foi recusada.
Tanto basta – e isso nos dispensa, por inutilidade, da abordagem de outros fundamentos de desconformidade constitucional constantes dessa decisão – para concluir pela improcedência do recurso
[…]” (sublinhados acrescentados).
2.6. O percurso da fundamentação do Acórdão n.º 424/2020 pode ser integralmente transposto para a hipótese dos presentes autos.
Em qualquer dos casos – e é esta uma primeira nota essencial – encontramo-nos num período em que não vigora a declaração do estado de emergência, mas sim a declaração de situação de calamidade.
Continua a valer, na hipótese dos presentes autos a afirmação de que “[o] gozo do direito à liberdade pessoal é afetado pela imposição de quarentena obrigatória aos passageiros provenientes do estrangeiro e pela imposição de isolamento a pessoas suspeitas ou confirmadas com teste positivo de infeção pelo novo coronavírus” – Alessandra Spadaro, COVID-19: Testing the Limits of Human Rights, European Journal of Risk Regulation, European Journal of Risk Regulation, 11(2), 317-325. doi:10.1017/err.2020.27].
Acima de tudo, e ainda em coerência com a jurisprudência constitucional anterior, impõe-se concluir, uma vez mais, que o confinamento na habitação corresponde, inequivocamente (na classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima dimensão abstrata”, implica que a pessoa visada “fica [circunscrita a um] espaço confinado […], de todo [impedida] de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão) – recorde-se que está em causa a privação da liberdade, através do confinamento na habitação, de um grupo indeterminado à partida (embora determinável) de pessoas por período de 13 dias –, seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito pouco se afasta do que resultaria da aplicação de uma (hipotética) pena privativa da liberdade executada no domicílio, seja até, por maioria de razão, face ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas.
Em suma, à semelhança do que se concluiu no Acórdão n.º 424/2020, no caso dos autos impõe-se a conclusão de que as normas sub judice preveem medidas de privação da liberdade, de sinal contrário à previsão do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição e ao direito à liberdade consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, na sua vertente de liberdade pessoal.
2.7. Na hipótese apreciada no Acórdão n.º 424/2020, entendeu-se, linearmente, que “todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que “[…] ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito” (Acórdão n.º 362/2011). Assim, verificando-se que as normas sub judice estabelecem medidas que privam da liberdade as pessoas por ela visadas, contra o previsto no artigo 27.º da Constituição (supra, 2.2.3.), é evidente que a respetiva matéria se encontra abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – competência que não foi concretamente delegada e só o poderia ser no Governo (e não no Governo Regional – cfr. artigos 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º, n.º 1, da Constituição)”.
No presente caso, é igualmente linear que a obrigação de confinamento se integra na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Todavia, a apreciação da falta de previsão legal da medida carece de considerações adicionais.
2.7.1. A base legal expressamente invocada pelo Conselho de Ministros foi a seguinte: “(…) [nos termos dos] artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do n.º 6 do artigo 8.º e do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição (…)”.
A invocação da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, remetendo para a competência administrativa do Governo, obriga a indagar, nesta matéria, face ao exposto nos itens anteriores, sobre a precedência de lei.
Os artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, ainda que se possam admitir cobertos pelo manto legal do artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não relevam enquanto base para a atuação do Governo, pois dizem respeito, unicamente, a restrições de acesso a estabelecimentos e a serviços e edifícios públicos.
O Governo invoca, ainda, o disposto nos artigos 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto (que cria o Sistema de Vigilância em Saúde Pública, por vezes designada “Lei da Saúde Pública”, doravante LSP), 8.º, n.º 6, e 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho (Lei de Bases da Proteção Civil, doravante LBPC), que merecem atenção mais detida.
2.7.2. O artigo 17.º da LSP estabelece o seguinte:
Artigo 17.º
Poder regulamentar excecional
1 – De acordo com o estipulado na base XX da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infeção ou contaminação.
2 – O membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta do diretor-geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, pode emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação.
3 – As medidas previstas nos números anteriores devem ser aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei.
4 – As medidas e orientações previstas nos n.os 1 e 2 são coordenadas, quando necessário, com o membro do Governo responsável pelas áreas da segurança interna e proteção civil, designadamente no que se reporta à mobilização e à prontidão dos dispositivos de segurança interna e de proteção e socorro, devendo ser comunicadas à Assembleia da República.
O n.º 1 remete para a base XX da Lei n.º 48/90, de 24 de agosto (Lei de Bases da Saúde de 1990), cujo teor literal é o seguinte:
Base XX
Situações de grave emergência
1 – Quando ocorram situações de catástrofe ou de outra grave emergência de saúde, o Ministro da Saúde toma as medidas de exceção que forem indispensáveis, coordenando a atuação dos serviços centrais do Ministério com os órgãos do Serviço Nacional de Saúde e os vários escalões das autoridades de saúde.
2 – Sendo necessário, pode o Governo, nas situações referidas no n.º 1, requisitar, pelo tempo absolutamente indispensável, os profissionais e estabelecimentos de saúde em atividade privada.
À data em que foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, a Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, já se encontrava revogada pela Lei de Bases da Saúde de 2019 (Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro – cfr. os respetivos artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 4.º). Na Lei de Bases da Saúde de 2019, a norma correspondente à base XX é a da base 34, com destaque para o seu n.º 3:
Base 34
Autoridade de saúde
1 – À autoridade de saúde compete a decisão de intervenção do Estado na defesa da saúde pública, nas situações suscetíveis de causarem ou acentuarem prejuízos graves à saúde dos cidadãos ou das comunidades, e na vigilância de saúde no âmbito territorial nacional que derive da circulação de pessoas e bens no tráfego internacional.
2 – Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde:
a) Ordenar a suspensão de atividade ou o encerramento dos serviços, estabelecimentos e locais de utilização pública e privada, quando funcionem em condições de risco para a saúde pública; b) Desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública; c) Exercer a vigilância sanitária do território nacional e fiscalizar o cumprimento do Regulamento Sanitário Internacional ou de outros instrumentos internacionais correspondentes, articulando-se com entidades nacionais e internacionais no âmbito da preparação para resposta a ameaças, deteção precoce, avaliação e comunicação de risco e da coordenação da resposta a ameaças; d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes.
3 – Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado.
Por fim, os artigos 8.º e 19.º da LBPC têm a seguinte redação:
Artigo 8.º
Alerta, contingência e calamidade
1 – Sem prejuízo do caráter permanente da atividade de proteção civil, os órgãos competentes podem, consoante a natureza dos acontecimentos a prevenir ou a enfrentar e a gravidade e extensão dos seus efeitos atuais ou expectáveis:
a) Declarar a situação de alerta;
b) Declarar a situação de contingência;
c) Declarar a situação de calamidade.
2 – Os atos referidos no número anterior correspondem ao reconhecimento da adoção de medidas adequadas e proporcionais à necessidade de enfrentar graus crescentes de risco.
3 – A declaração de situação de contingência ou de situação de calamidade pressupõe, numa lógica de subsidiariedade, a existência prévia dos atos correspondentes aos patamares precedentes, salvo na ocorrência de fenómenos cuja gravidade e extensão justifiquem e determinem a declaração imediata de um dos patamares superiores.
4 – A declaração de situação de alerta, de situação de contingência e de situação de calamidade pode reportar-se a qualquer parcela do território, adotando um âmbito inframunicipal, municipal, supramunicipal, regional ou nacional.
5 – Os poderes para declarar a situação de alerta ou de contingência encontram-se circunscritos pelo âmbito territorial de competência dos respetivos órgãos.
6 – O Ministro da Administração Interna pode declarar a situação de alerta ou a situação de contingência para a totalidade do território nacional ou com o âmbito circunscrito a uma parcela do território nacional.
Artigo 19.º
Competência para a declaração de calamidade
A declaração da situação de calamidade é da competência do Governo e reveste a forma de resolução do Conselho de Ministros.
As normas da LBPC não conferem adequada cobertura legal à atuação do Governo, visto que se trata, no essencial, de normas de competência, não especificamente dirigidas à privação da liberdade, muito menos à privação da liberdade através de um confinamento.
O artigo 17.º da LSP, diretamente, não dispõe sobre a matéria. Na verdade, o confinamento no domicílio de pessoas na sequência de contacto com outras pessoas infetadas – é este o caso da ordem administrativa apreciada na decisão recorrida – não se reconduz a “separação de pessoas que não estejam doentes” (n.º 1 do artigo 17.º da LSP). Por outro lado, a expressão “normas regulamentares no exercício dos poderes de autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja eficácia dependa da celeridade na sua implementação” (n.º 2 do artigo 17.º da LSP) é uma expressão demasiado ampla, que, uma vez mais, não vai especial e claramente dirigida à privação da liberdade pessoal, em particular à que tenha a intensidade de um confinamento por 13 dias.
Encontrando-se a Lei de Bases da Saúde de 1990 revogada à data em que foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, a sua relevância enquanto base legal para a atuação do Governo só poderia aceitar-se entendendo a remissão do n.º 1 do artigo 17.º da LSP enquanto remissão estática. Sucede que, sendo as remissões legais, por regra, dinâmicas [cfr. António Menezes Cordeiro, “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de julho de 1988”, O Direito, ano 121, I (janeiro-março de 1989), pp. 193/194], não há elementos diretos ou indiretos na LSP que permitam concluir que se trata de uma remissão estática.
Tratando-se, no artigo 17.º, n.º 1 da LSP, de uma remissão dinâmica, deverá entender-se que vai dirigida, com atualidade, à base 34 da Lei de Bases da Saúde de 2019, supra transcrita. No entanto, esta não oferece qualquer suporte legal à imposição de uma medida prolongada de confinamento. Não se trata, manifestamente, de “internamento ou […] prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública” nem de mera “vigilância sanitária” (alíneas b) e c) do n.º 2 da citada base 34. Por outro lado, a previsão de “medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado” (n.º 3 da mesma base) não é – uma vez mais – especificamente dirigida à privação da liberdade pessoal nos termos particularmente intensos que aqui estão em causa.
Mas, ainda que se tratasse, no artigo 17.º, n.º 1 da LSP, de uma remissão estática (como vimos, não há elementos para assim concluir) para a base XX da Lei de Bases da Saúde de 1990, a conclusão – no sentido da falta de cobertura legal para a atuação do Governo – continuaria a manter-se. Na verdade, a expressão “as medidas de exceção que forem indispensáveis”, por muita latitude que se lhe possa reconhecer, não é suficientemente densa para que dela se possa extrair uma previsão de restrição da liberdade pessoal como aquela que foi prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021.
Em suma, a interpretação deste último preceito segundo a qual permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial não encontra, manifestamente, previsão legal.
2.7.3. Em face do exposto, resta concluir que, se todas as normas disciplinadoras de um direito liberdade ou garantia carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República, exigência que “[…] ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito” (Acórdão n.º 362/2011), verificando-se que a norma sub judice estabelece medidas que privam da liberdade as pessoas por ela visadas, contra o previsto no artigo 27.º da Constituição, então a respetiva matéria fica abrangida pela reserva de competência legislativa prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição – competência que o Governo não foi autorizado a exercer.
Mostra-se, pois, bem fundado o juízo de censura jurídico-constitucional afirmado na decisão recorrida, no que respeita à inconstitucionalidade orgânica da norma cuja aplicação foi recusada.
Tanto basta – e isso nos dispensa, por inutilidade, da abordagem de outros fundamentos de desconformidade constitucional constantes dessa decisão – para concluir pela improcedência do recurso.
III – Decisão
-
- Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do regime anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-C/2021, na interpretação segundo a qual permite a privação administrativa da liberdade de um grupo indeterminado de pessoas por período de 13 dias, com base em ordem administrativa e sem controlo judicial, por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, por referência ao artigo 27.º, da Constituição da República Portuguesa; e, consequentemente, b) julgar improcedente o recurso.
3.1. Sem custas (artigo 84.º, n.º 1 e n.º 2, da LTC, este a contrario).
Lisboa, 1 de fevereiro de 2022 – José Teles Pereira – Maria Benedita Urbano (junta declaração de voto) – Pedro Machete – José João Abrantes – João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
Em sede distinta desta, tive a oportunidade de me pronunciar sobre o quadro jurídico que sustenta a emanação, pelo Conselho de Ministros, de resoluções que, nuns casos, suspendem e, em outros, restringem direitos fundamentais. Na altura, perante uma RCM que restringia a liberdade de circulação consagrada no artigo 44.º da CRP, entendi – pouco convicta, mas sensibilizada pela crise pandémica que se vivia e pelo caráter limitado da restrição em questão – que, fazendo apelo a uma “moderada criatividade”, seria possível encontrar no artigo 17.º da Lei n.º 81/2008 um esteio legitimador das medidas restritivas então adotadas pelo Governo.
No presente caso, em que está em causa uma imposição de confinamento, verdadeira privação da liberdade pessoal constitucionalmente garantida no artigo 27.º, resulta patente a fragilidade de uma solução que procurava, em contexto de pandemia, contornar a inexistência de um quadro constitucional e legal especificamente dirigido às situações de crise sanitária. Por esse motivo, acompanho e subscrevo o presente acórdão, quer quanto à decisão, quer quanto à sua fundamentação.
Maria Benedita Urbano